Saúde Ocupacional: sempre (h)á mama

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Duas trabalhadoras, enfermeiras, de dois hospitais do norte do país, em consulta de Medicina do Trabalho “espremem leite das mamas” em frente de médicos de Saúde Ocupacional segundo foi noticiado:

In Público, online

“…Duas enfermeiras, uma do Hospital de Santo António e outra do Hospital do S. João, no Porto, queixam-se de terem tido que comprovar que estão a amamentar espremendo leite das mamas em frente a médicos de saúde ocupacional.”

“… A médica de saúde ocupacional ter-lhe-á perguntado, de seguida, desde quando estava a amamentar. “Fiquei estarrecida e em simultâneo preocupada, porque isto demonstra perfeita ignorância sobre a amamentação em si. Respondi que desde que o meu filho nasceu, claro!”. Depois disso, conta, a médica disse-lhe que iam ver se tinha leite …”.

Tudo leva a crer que se trata de factos reais já que eu próprio ouvi o Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar do Porto (Hospital de Santo António) a pronunciar-se, num noticiário televisivo, sobre a matéria no dia 20 de abril de 2015.

Incrédulo, recordei-me do que se passou comigo há um quarto de século numa grande empresa portuguesa em que no Acordo de Empresa constava uma cláusula que, de alguma forma, facilitava às mulheres a ausência possível de um dia por mês por eventual dismenorreia.

Fui então confrontado com o pedido de confirmar, como responsável pelos serviços de Medicina do Trabalho, se as mulheres estariam nessa situação, dada a forte suspeição de casos de abuso da utilização dessa norma.

Se bem me recordo, pessoalmente, informei que a Medicina do Trabalho não realizaria tal tipo de atividade, fundamentando tecnicamente as razões de tal recusa, o que foi prontamente acolhido.

Posteriormente, informei por escrito que o médico do trabalho, em nenhuma circunstância, faz a fiscalização das ausências dos trabalhadores, independentemente do motivo que as determinam e que a sua contratação e atividade se prende apenas com a prevenção dos riscos profissionais (com mais destaque na prevenção médica) e na promoção da saúde das pessoas que trabalham. Evoquei então o enquadramento técnico-legal do exercício da Medicina do Trabalho e a sua moldura ética, baseado no Código Internacional de Ética para os profissionais de Saúde Ocupacional da Comissão Internacional de Saúde Ocupacional.

Nos últimos dias tenho refletido amplamente sobre o que sucedeu, não numa perspetiva jornalística mas na perspetiva de quem tem dedicado uma grande parte da sua vida à Medicina do Trabalho e à Saúde Ocupacional.

Por contraditório que pareça o que mais me tem perturbado não é tanto a atitude que adjetivaria de “grosseira” do acontecimento em si mesmo mas, acima de tudo a denominação de médico de Saúde Ocupacional.

De facto, desde 1962 (Decreto 44537, de 22 de agosto de 1962) que a referência é a médico do trabalho, independentemente de ser a melhor ou a pior denominação. Posteriormente toda a legislação desta área se refere ao “médico do trabalho”, sendo a Medicina do Trabalho uma especialidade médica reconhecida pela Ordem dos Médicos desde 1979. Porque será então que, mesmo em abordagens técnicas se usam indiscriminadamente: médico de medicina ocupacional; médico da empresa ou, por exemplo, médico de Saúde Ocupacional.

Ainda que a comparação possa ser considerada caricatural seria equivalente a chamar ao Psiquiatra, médico de Saúde Mental, ao Obstetra, médico de Saúde Materna ou, por exemplo ao Pediatra, médico de Saúde Infantil.

A razão destas “notas soltas” é que tal não faz sentido. É médico do trabalho. E que poderá ter o médico do trabalho a ver com a amamentação?

Por paradoxal que possa parecer o médico do trabalho tem a ver com isso numa perspetiva de promoção da saúde dos trabalhadores a seu cargo, conhecidos que são os benefícios não só para a criança mas também para a mãe na relação criada no ato da amamentação. Dito de outra forma, esse mesmo ato, numa relação médico do trabalho/trabalhadora, poderia estar enquadrado no contexto referido. Mas o contexto descrito não é esse e, mesmo que a questão seja administrativamente (in)aceitável, restam outras vertentes, por exemplo as de natureza jurídica.

Se é verdade o que é dito na notícia, ainda bem que foi um médico de saúde ocupacional que o fez por solicitação de outros médicos (?) e não um médico do trabalho. Porque a Medicina do Trabalho nada tem a ver com esse tipo de atividades e médico de Saúde Ocupacional não será mais que uma má designação para o médico do trabalho.

 

Bibliografia

  • Campos, Alexandra. Mulheres forçadas a espremer mamas para provar que amamentam. In Público, 2015-04.19, 8:49. Disponível em: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/enfermeiras-obrigadas-a-espremer-mamas para-provarem-que-estao-a-amamentar-1692832; consultado em 2015-04-22.
  • International Commission on Occupational Health (ICOH), 2003. Disponível em: http://www.icoh.org.sg/
  • Sousa-Uva, A. (ed.). Trabalhadores saudáveis e seguros em locais de trabalho saudáveis e seguros, Lisboa: Petrica Editores, 2011.
  • Sousa-Uva, A.; Serranheira, F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar. Lisboa: Diário de Bordo, 2013
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António de Sousa Uva

António de Sousa Uva

Médico do Trabalho, Imunoalergologista e Professor Catedrático de Saúde Ocupacional.

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