A evolução das atividades agrícolas, bem como da sua natureza e características, e ainda das entidades que as prestam e dos modos como o fazem constituem uma temática particularmente interessante, também do ponto de vista do Direito do Trabalho, que, porém e dada a sua dimensão, procuraremos aqui tratar apenas do ponto de vista de alguns dos seus aspetos essenciais.
Assim, e antes de mais, importará ter presente que, após décadas e décadas de exclusão da regulação do trabalho rural do âmbito das principais leis do trabalho (tais como a chamada LGT – Lei Geral do Trabalho – isto é, o Decreto lei n.º 49408, de 24 de Novembro de 1969, ou a LDT – Lei da Duração do Trabalho – ou seja, o Decreto Lei n.º 409/71, e ainda a denominada Lei das Faltas, Férias e Feriados – o Decreto Lei n.º 864-A/76), o Código do Trabalho de 2009 (tal como já o de 2003) e a sua Regulamentação não contêm qualquer norma genérica de exclusão deste tipo de relações laborais relativamente ao seu próprio âmbito de ampliação, pelo que se terá então de concluir que, ao invés do que sucederia antes, o regime jurídico constante daqueles dois últimos diplomas (os Códigos do Trabalho) se passou a aplicar genericamente também ao contrato de trabalho rural.
Deve, porém e desde logo, reconhecer-se que este entendimento não foi, nem é, pacífico. Por um lado, porque, não obstante quer aquela clara exclusão consagrada na LGT e noutros diplomas, quer os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais no sentido de que o contrato de trabalho rural seria regulado, não pelas leis laborais, mas pela lei civil, e designadamente pelos art.ºs 1391º e 1395º do Código Civil de 1867, afinal muito tempo antes do Código de 2003 também já existiam entendimentos de que, apesar de tudo, “as normas gerais do contrato individual de trabalho são extensivas ao contrato de trabalho rural, salvo na medida em que as condições especiais inerentes à atividade agrí- cola justifiquem tratamento diverso” (como, entre outros, se consagrou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/1/88, in Proc. 001714.dgsi. Net). E isto mesmo enquanto o art.º 5º do decreto preambular da já referida LGT apenas estabelecia que o seu regime, quando muito, poderia “ser tornado extensivo, por decreto regulamentar, no todo ou em parte, e com as adaptações exigidas pela sua natureza, aos contratos de serviço doméstico ou de trabalho rural”.
Por outro lado, o Código do Trabalho atual (2009), no seu art.º 9º, e a contrario sensu, afasta precisamente a aplicação aos “contratos com regime especial” daquelas suas normas que se mostrem incompatíveis com as especificidades de tais contratos, o que pareceria ser o caso do trabalho subordinado nas áreas agrícola, florestal e pecuária, mas relativamente ao qual, como também já referido, inexiste contudo qualquer regulamentação legal de natureza especial.
Em qualquer caso, face à amplitude dos conceitos de “trabalho” e de “trabalhador” consagrados na Constituição da República, designadamente nos seus art.os 47º e 53º a 59º, parece-nos inquestionável a aplicabilidade ao trabalho rural da regulação jurí- dico-laboral, quer de natureza legal, quer constitucional.
Por fim, deverá igualmente dizer-se que, mesmo aceitando-se – como é nosso entender – a plena aplicabilidade das normas do Código do Trabalho e do Regulamento do Código do Trabalho ao trabalho rural, haverá que ter presente que o único e geral instrumento normativo específico que regula esta matéria é a mais que vetusta Portaria de Regulamentação do Trabalho (PRT) para a Agricultura de 1979 (publicada no Boletim do Trabalho e Emprego n.º 21/79, 1ª Série, de 8/6/791). A qual, sendo uma fonte de direito hierarquicamente inferior à lei, terá de ter as respetivas normas compatibilizadas com as supra referenciadas e superiores fontes legais, de harmonia com os critérios de aplicação estabelecidos no art.º 3º do Código. O mesmo sucedendo com as várias convenções coletivas existentes e as respetivas Portarias de Extensão.
Temos pois, e antes de tudo o mais, um quadro normativo relativo ao trabalho rural assalariado ou dependente que é constituído por uma regulamentação legal geral, manifestamente não virada para as especificidades próprias deste setor, e por um instrumento genérico de regulamentação coletiva de natureza administrativa, esse sim específico mas com quase 40 anos de vigência, a que acrescem umas poucas convenções coletivas de trabalho e Portarias de Extensão.
Acresce, por outro lado, que a relativamente pequena expressão do número de trabalhadores por conta de outrem no setor da “agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca” e, dentro deste, especificamente na agricultura, e a perda de peso desta última na estrutura da população empregada por profissão, mesmo dos trabalhadores mais qualificados, e muito em particular nos períodos de 2011/2013 e de 2013/2015, tem servido para justificar, ou pelo menos explicar, a pouca atenção dada pelo legislador português a uma regulação jurídica mais específica das relações de trabalho, quer subordinado, quer autónomo, nesta área de atividade.
Acresce ainda que, e não decerto por acaso, as novas formas contratuais consagradas no Código do Trabalho para além da contratação a termo, certo ou incerto, e a pensar (também) no trabalho agrícola, e em particular no de carácter sazonal, não têm assumido praticamente qualquer expressão numérica ou estatística digna de registo.
Assim, o contrato de trabalho intermitente, previsto no art.º 157º e seguintes do Código do Trabalho e correspondente a uma espécie de contrato de trabalho sem termo mas utilizável em atividades caracterizadas pela variabilidade da sua intensidade ou até pela sua descontinuidade (como é o caso do setor da agricultura, e também do turismo), segundo o Livro Verde das Relações Laborais abrangeu, em 2013, o número total de 2 039 trabalhadores e, em 2014, o de 2 154 trabalhadores, mais de metade dos quais qualificados e semiqualificados (especializados), ou seja, representou uma forma contratual de incidência perfeitamente residual (0,08%).
E os números constantes do mesmo Livro Verde referentes ao “contrato de trabalho de muito curta duração” (em atividade sazonal agrícola ou também para realização de evento turístico de duração não superior a 15 dias), que está previsto e regulamentado no art.º 142º do Código do Trabalho e tem em vista necessidades temporárias de duração muito limitada, precisamente por visar a satisfação de necessidades temporárias de setores em que a sazonalidade da atividade contratada constitui uma sua característica muito própria, apresentam-se tão irrisórios quanto significativos. Ou seja, são de uma reduzidíssima, para não dizer quase inexistente, dimensão na maior parte dos meses e apenas apresentam “picos” repentinos em setembro e outubro de cada ano, provavelmente relacionados com campanhas agrícolas como as vindimas, mas mesmo aí representando, ainda de acordo com o já referido Livro Verde das Relações Laborais, qualquer coisa como 0,066% do número total dos vínculos laborais.
Sinceramente não cremos, todavia, que esta muito parca utilização de tais formas contratuais se deva, pelo menos exclusivamente ou até principalmente, à complexidade do respetivo regime jurídico ou à tão frequentemente afirmada (mas realmente inexistente…) “excessiva rigidez” dessa legislação laboral.
Basta atentar em que o contrato de trabalho de muito curta duração, nos termos do n.º 1 do já citado art.º 142º do Código do Trabalho, não exige sequer forma escrita e estipula apenas uma obrigação de comunicação à Segurança Social da sua celebração (ainda que mediante formulário eletrónico). E o contrato de trabalho intermitente, impondo-se embora a sua forma escrita, exige somente dois elementos (a identificação das partes e respetivos domicílios e a indicação do número anual ou de horas de trabalho ou de dias de trabalho a tempo completo).
Dir-se-á, porventura, que mesmo estas exigências, designadamente as de ordem formal, serão de difí- cil cumprimento por parte de trabalhadores e empregadores, sobretudo individuais, e em particular dos caracterizados por fracos níveis de instrução.
Mas o certo é que aqueles requisitos legais se revelam indispensáveis para se procurar assegurar que estas formas contratuais de acentuada temporalidade ou precariedade não sejam utilizadas de modo abusivo. E a questão essencial residirá, não na sua eliminação ou revogação, mas sim no asseguramento das condições mínimas indispensáveis para o seu cumprimento.
Por fim, importará ainda ter presente que, em 2014, todo o setor da agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca era constituído, segundo as estatísticas dos quadros de pessoal do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social citadas ainda e sempre no já referido Livro Verde das Relações Laborais, por 13 063 empresas, com 13 885 estabelecimentos e 59 974 pessoas ao serviço, das quais 54 661 eram trabalhadores por conta de outrem, numa média de 4,3 trabalhadores por estabelecimento.
Tudo isto representa que a esmagadora maioria das estruturas empresariais do setor agrícola são, de acordo com a classificação do art.º 100º do Código do Trabalho, microempresas e, por outro lado, que há ainda um número muito considerável de produtores em nome individual.
Há todavia que sublinhar igualmente que a situação de uma agricultura fundada na propriedade individual de um pequeno camponês ou até de uma micro ou pequena empresa agrícola, e baseada em trabalho essencialmente manual ou pelo menos com muito fraca incorporação tecnológica, tem vindo a sofrer alterações significativas, em particular nos últimos 10 anos, assistindo-se à concentração da propriedade em unidades empresariais bem maiores, à industrialização crescente de diversos setores e a uma progressiva adoção de novas tecnologias nas suas diversas áreas (desde a rega à fertilização dos solos, passando pela mobilização deste e pelo combate às doenças e pragas), com o consequente aumento de produtividade e de competitividade de uma área crescente deste setor. Setor esse que, contudo, se caracteriza (ainda) por uma acentuada falta de juventude, pois que mais de 50% dos agricultores portugueses permanece tendo mais de 65 anos de idade.
O que tudo isto significa é que, apesar de tudo, estamos a falar de um setor da população, de uma forma geral, com pouca capacidade logística para compreender, dominar e aplicar correta e plenamente não apenas os institutos e instrumentos jurí- dicos que formal e abstratamente a lei lhes impõe ou disponibiliza, mas também toda a panóplia de requisitos, formais e substanciais, indispensá- veis ao mais correto e preparado desenvolvimento da sua atividade. Desde a negociação e celebração de contratos de seguros e de financiamentos bancários, passando pela candidatura a programas de apoios e pela aquisição e manutenção de equipamentos mais adequados, até ao conhecimento das regras e procedimentos legalmente impostos, designadamente em matéria de segurança e saúde no trabalho e de regras ambientais. Com o consequente recurso e, não raramente, a completa sujeição, técnica e/ou económica, a entidades terceiras, prestadoras de serviços nessas áreas.
Sendo em absoluto de rejeitar (até por já podermos ver hoje com bastante clareza onde elas nos conduziriam…) as teorias e as práticas de busca da produtividade e da competitividade com base na lógica essencial, para não dizer exclusiva, dos baixos “custos unitários do trabalho” – leia-se, dos salários de miséria… – e da fraude à lei (designadamente, com o uso de falsos recibos verdes para encobrir verdadeiros contratos de trabalho subordinado e com o recurso às formas do chamado trabalho informal, não declarado ou atípico, ou seja, desenvolvido por completo à margem da lei, senão mesmo ao trabalho escravo ou a ele equiparável), há assim que refletir seriamente sobre os caminhos que se impõe trilhar para assegurar uma estratégia de desenvolvimento assente no respeito pelos direitos de quem trabalha e no combate às lógicas da “lei da selva”, que sempre tendem, em particular em setores como este, a instalar-se, nomeadamente por via de processos de autêntico “dumping social” e de verdadeira concorrência desleal.
Antes de tudo o mais, porém, existe um conjunto de questões de base, cada vez mais incontornáveis, que configuram e condicionam fortemente a nossa realidade quotidiana e que, também na agricultura, não é possível continuar a pretender ignorar e silenciar. Trata-se, em especial, das seguintes questões:
1.ª Qual o papel estratégico que deve ser atribuído à agricultura (e também às pescas, por exemplo) num país como o nosso? Devem ou não tais setores estar essencialmente vocacionados para, antes de tudo, assegurarem a nossa autossuficiência, pode dizer-se mesmo a nossa soberania alimentar, garantindo à população portuguesa o abastecimento, em quantidade suficiente, dos alimentos básicos para a sua subsistência?
2.ª A chamada integração quer na União Europeia, quer no euro, facilita ou dificulta, ou até mesmo impossibilita, esse objetivo (já que a chamada Polí- tica Agrícola europeia tem assentado na lógica de que, no espaço europeu, a atividade e produção agrícolas são essencialmente para França, como a Pesca é para a Espanha e a Indústria para os paí- ses do Norte, sobretudo a Alemanha, reservando assim a Portugal o papel de um país do terciário, sobretudo do Turismo e das prestações de serviços menos qualificadas)?
3.ª Em que é que pode e deve consistir a organização da produção agrí- cola nacional num país e num setor produtivo com as características que já acima se assinalaram, senão na associação dos produtores em estruturas cooperativas que permitam aos agricultores passarem a dispor da “massa crítica” logística e financeira suficiente para poderem aceder aos meios e equipamentos e aos serviços de que necessitam para o desenvolvimento da sua atividade?
Depois, impõe-se igualmente sublinhar que, não obstante todas as especificidades e todas as dificuldades inerentes, as relações de trabalho na agricultura devem, até por imperativo constitucional, ser reguladas de forma correta e eficaz, de molde a se evitarem as práticas e as “estratégias de competitividade” assentes na fraude à lei e no desrespeito dos direitos fundamentais de quem trabalha neste setor
Assim, e com tal objetivo, podem e devem ser devidamente ponderadas e adotadas as seguintes medidas:
1.ª Fiscalização efetiva (hoje em dia praticamente inexistente) por parte da ACT quanto à celebração e à existência de contratos de trabalho sem termo para todas as situações de preenchimento e satisfação de necessidades permanentes de trabalho.
2.ª Dinamização do recurso à contratação coletiva (entre associações sindicais dos assalariados agrí- colas e as entidades empregadoras ou associações empresariais do setor) como forma de superar e atualizar os normativos fundamentais, e já muito desatualizados, ainda constantes da PRT de 1979; e, caso tal não se revele possível em tempo útil, elaboração (a título de garantia de condições mínimas) de uma nova PRT para a agricultura, definindo o respetivo regime jurídico-laboral nomeadamente quanto a “patamares mínimos de regulação” relativamente a remunerações, horários de trabalho, condições de segurança e saúde no trabalho, e também (questão esta hoje em dia particularmente relevante) de regime(s) de alteração dos locais de trabalho, tudo isto em termos que garantam o adequado equilíbrio entre as reais necessidades decorrentes da prestação e da especificidade da atividade em causa e a organização e estabilidade familiares, bem como a fixação das próprias populações.
3.ª Divulgação essencialmente pedagógica e ampliação da aplicação dos regimes de contratação temporária ou intermitente, mas apenas nos casos – que, ainda assim, são diversos e bastante amplos – em que se verifiquem os respetivos pressupostos legais.
4.ª Firme perseguição e sancionamento de todas as formas ilegais de contratação de trabalhadores e severa e contínua atuação contraordenacional e até criminal contra os responsáveis por situações de escravatura ou equiparadas a esta, ou de trabalho informal ou clandestino.
5.ª Restrição (e fiscalização) do recurso a empresas prestadoras de serviços e empresas de trabalho temporário unicamente às situações em que tal recurso tenha estrita justificação legal, bem como efetivo acionamento da “responsabilidade em cascata” das várias empresas envolvidas (contratantes e beneficiárias) nas matérias de responsabilidade, designadamente pelo pagamento das remunerações e pelo cumprimento das obrigações relativas à promoção e salvaguarda da segurança e saúde no trabalho.
Por fim, naturalmente que estas medidas, a nível essencialmente laboral, não poderão deixar de ser ainda acompanhadas de outras, de natureza polí- tica, administrativa e até fiscal, como instrumentos de dinamização ao desenvolvimento da atividade agrícola, nomeadamente através não apenas do apoio organizativo – com serviços públicos de atendimento e apoio, próximos, disponíveis e eficazes, que ajudem ao preenchimento dos requisitos burocráticos atinentes aos diversos aspetos da atividade e ao próprio cumprimento das normas e regulamentos –, mas também de medidas de discriminação positiva em favor das estruturas e organizações que decidam fixar-se em áreas consideradas estrategicamente importantes, aí levem a cabo atividade produtiva e criem postos de trabalho, contribuindo desse modo para o desenvolvimento daquela concreta área geográfica e do país no seu conjunto e para o combate à desertificação e ao abandono das regiões mais interiores.
.
Fonte (ACT):
Autor: ANTÓNIO GARCIA PEREIRA – Advogado especialista em Direito do Trabalho, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão
- inCloud for Safemed presente na PROTEGER 2018 – 6.ª Conferência de Segurança - 12 Novembro, 2018
- Seleção, utilização e manutenção dos EPI - 17 Abril, 2018
- Ábaco Consultores promove inCloud for Safemed para o mercado Ibérico - 3 Abril, 2018